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As velhinhas da Vila Santana

Cezar Ribeiro



Elas apontam na rua às cinco. Reconheço-as no arrastar dos seus carrinhos que deslizam pelos becos e ruas que dão nas feiras das quartas. São as velhinhas da Vila Santana florescendo no dia, junto às luzes do primeiro raio da manhã. As rugas estampadas em cada rosto contam histórias de outros tempos, narradas nas bancas de verduras, filas da garapa e nas prosas sob as janelas das casas antigas.


Dia desses refletia nas coisas da vida enquanto andava pelas ruas do bairro com o meu cachorro. Por muitas casas passamos todos os dias, na maioria das vezes antigas, mas uma me chamou a atenção naquela manhã de outono. Era uma casa construída com tijolos fissurados. Seu tom amarelo acentuava-se ainda mais na luz do sol, que rompia na fímbria do horizonte. Em sua janela, uma senhora costurava qualquer coisa, tinha o vestido roto e ouvia uma música triste no rádio. Penso que um dia aquela casa ruirá, nesse dia, sua dona já terá partido, e as duas serão fragmentos que contam a história da Vila Santana. Histórias construídas muitas vezes na solidão, como a de outra senhora que mora na soturna casa no final da Rua Frei Galvão. Dona Jô vive em uma grande casa, onde moravam com ela o marido e a irmã. Os dois morreram, ela ficou só. Hoje ela não sai como antes, passa os dias ocupando a casa com a sua solidão. Às vezes, nos brinda com a sua presença na escada ao sol da tarde.


Mesmo que algumas sucumbam à escuridão do claustro, todos já sabem que tais velhinhas são dadas à luz do dia. É fim de tarde quando o sol cai nas casas distantes do oeste, entre sons de buzinas e cantos de sabiás uma velhinha assovia, vem soprando um samba antigo, ritmado nos lentos passos do cachorro que a acompanha, e ela vai, porque no peso dos anos há a leveza de poder decidir o seu caminho, ela vai, andando a esmo, para qualquer lugar da Vila Santana.


Em uma esquina assunta coisas da vida com outras que também ali vão se juntando. Um neto se foi para outro país, a nora volta nas próximas férias, uma amiga querida partiu – nada é esquecido. A tarde apraz revela todas as nuances do que a vila tem de mais valioso, o seu tesouro se resume nessas senhoras que fazem a vida florescer em cada esquina, que de tão cheias no alto da tarde, sobrepujam os carros e transeuntes apressados, desprovidos do plácido sorriso largo estampado no rosto de cada uma. Flores do Guarujá, pitangueiras e ipês são arabescos que adornam um lento ir e vir de senhoras vivendo no hóspito chão da Vila Santana.


A noite traz o seu manto sobre o bairro, uma tosse masculina e vozes de crianças ecoam pela vila, sons que pousam na minha janela. Na rua elas ainda sobem, ainda descem, levam sacolas, bengalas e muitas vezes pequenas mãos de crianças, netos, bisnetos. Aqui passarão a vida e chegará o dia em que os netos se tornarão avôs. Guardarão consigo o legado que perpetua a tradição do lugar.


A meia lua no céu revela as altas horas, de longe ainda chegam vozes, uma senhora canta uma música para alguém, talvez para uma criança, um neto. Eu me recolho, é hora de dormir, mas no bairro onde moro é lugar de vigilantes almas insones. Durmo um sono profundo, tranquilo, porque sei que mal não haverá se elas me velam, e só assim a vila dorme tranquila, sob a bênção e proteção das velhinhas da Vila Santana.


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