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Da história ao apagamento: resistência cultural indígena presente no contemporâneo

Atualizado: 25 de nov. de 2022

"Pindorama, Pindorama

É o Brasil antes de Cabral

Pindorama, Pindorama

É tão longe de Portugal [...]"


Pindorama - Canção de Palavra Cantada


Amanda Monteiro


Representação de apagamento cultural com indígenas do Centro de Convivência Indígena da Ufscar Sorocaba (Crédito: Cezar Ribeiro)


É impossível falar de uma única cultura ou costume indígena que se generaliza a todos os outros povos. No Brasil, durante a sua formação e bem antes da invasão europeia, havia cerca de oito a quarenta milhões de habitantes originários e cada qual com seu costume e identidade cultural marcante diferente.


Segundo Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro da etnia indígena crenaque, durante o primeiro episódio da série documental Guerras do Brasil.doc - original Netflix -, onde hoje chamamos de Brasil, habitavam mais de mil povos que falavam diferentes línguas e tinham diferentes culturas.


Com a vinda dos brancos e não indígenas, com uma má intenção, como o próprio Krenak diz, enquanto os nativos gostariam de saber sobre os aspectos físicos e diferentes dos colonizadores, portugueses e espanhóis queriam saber se os originários tinham "almas", perante a concepção católica, para assim decidir se poderiam ser escravizados ou não.


O tal dia da chegada dos colonizadores no Brasil, 22 de abril de 1500, que para alguns é a comemoração do "descobrimento do País”, para os povos originários, é só uma data que representa o massacre e a escravização de toda uma história e cultura e que muito se aplica aos dias de hoje, visto que algumas etnias são extintas. Mas há resistência.


Arielen Canino Miguel é indigena do povo Baré, de São Gabriel da Cachoeira, localizado na região Norte do país, especificamente no estado do Amazonas. Ela ainda fala um pouco de yēgatú, também conhecido como língua geral amazônica ou tupi moderno, por influência de seus avós que fazem questão de manter a ancestralidade cultural e linguística presente, mas relata que há costumes se perdendo no decorrer da história de sua própria família.


"Minha mãe foi morar em Manaus com uns 14 anos para trabalhar como babá, retornou à comunidade de nossa família aos 20 e eu nasci, mas logo voltou para Manaus e fiquei com meus avós, onde aprendi a língua. E como o povo Baré adotou a língua yēgatú, tivemos algumas mudanças e perdas ao longo do tempo. Por exemplo, quando não existem traduções, utilizamos o próprio português e o meu maior medo é a língua se perder e falarmos apenas 50% do yēgatú. É um risco", relata Arielen.


Termos como apropriação cultural, apagamento cultural, entre vários outros vêm sendo muito utilizados diante de tantas questões envolvendo as comunidades quilombolas, afrodescendentes e, principalmente, aos povos originários.


Estudar a questão indígena no Brasil faz com que criemos uma relação de pertencimento, seja com um olhar do "homem branco", simpatizante ao movimento de luta ou até mesmo da própria população indígena.


Sob o olhar do homem branco e/ou não indígena, faz com que cheguem ao conceito de cultura etnocêntrica, no qual o antropólogo britânico Edward Tyler (1832-1917) caracterizou como práticas para classificar, subjugar e inferiorizar outras culturas.


Nesse ponto, é possível nomear diversos aspectos que se caracterizam como intolerância cultural, religiosa e sob a perspectiva indígena, se torna um apagamento cultural e de identidade dos povos, o que acontece com muitos povos de toda extensão nacional.


Sileia Massa Alves é indígena também de São Gabriel da Cachoeira (AM), mas seu povo é o Tukano. Ela se mudou para o interior de São Paulo, pois foi aprovada no curso de Turismo da Universidade Federal de São Carlos no Campus Sorocaba.


Ela relata que mesmo com cerca de 90% da população de sua cidade sendo indígena, ainda há um forte preconceito, por parte das pessoas não indígenas e de instituições de ensino, por exemplo.


"Os meus pais já não falam a língua mãe deles. Por terem estudado em escolas católicas e com freiras, eram proibidos de falar e sofriam muito por isso, o qual também afetou os filhos e essas novas gerações. Eu só aprendi alguma coisa, pois passei 11 anos morando com a minha avó e falava comigo em Tukano, depois que faleceu, perdi o contato. Até entendo os meus pais, porque eles precisavam de emprego e por muitas vezes ir à cidade, então houve a necessidade de aprender a falar português", complementa Siléia.


Segundo a Associação Nacional de Educação Católica do Brasil, hoje é possível encontrar espalhadas em território nacional cerca de 430 mantenedoras, 2 mil escolas e 130 instituições superiores voltadas para o ensino católico, que reúnem 2,5 milhões de alunos e aproximadamente 100 mil professores e funcionários.


Diante de circunstâncias como o aumento de diferentes religiões e culturas que não pregam os ensinos e ritos católicos, há a necessidade de maior pluralidade cultural e a tendência para as instituições é dar menos ênfase aos aspectos católicos dentro das próprias escolas e abordar mais questões intelectuais e da valores culturais, mas ainda é uma realidade distante quando tratamos das questões indígenas no país.


"Meus pais me falavam com muita dor no coração, que quando eram novos, sofriam muito, eram maltratados e que precisavam realizar serviços precários, como ficar recolhendo fezes de boi para adubo, para assim conseguir um 'dinheirinho' e poder comer algo. Por outro lado, eles sempre me incentivaram a estudar para não sofrer o que eles sofreram."


Até o 6° ano do Ensino Fundamental, os estudantes tinham acesso ao yēgatú, mesma língua adotada pela família de Arielen, mas não a própria língua de cada povo como previsto por lei. E logo em seguida, o componente é substituído por inglês e espanhol.


Embora a educação escolar indígena, seja prevista na legislação, a mesma ainda enfrenta desafios para sua concretização.


O próprio apagamento


"[...] Pelos milhares que ontem foram e amanhã serão

Mortos pelo grão-negócio de vocês

Pelos milhares dessas vítimas de câncer

De fome e sede, e fogo e bala, e avcs

Saibam vocês que ganham "cum" negócio desse

Muitos milhões, enquanto perdem sua alma

Que eu me alegraria se afinal morresse

Esse sistema que nos causa tanto trauma"


Reis do Agronegócio - Canção de Chico César


Além das problemáticas como os fatores históricos e culturais, o Brasil é um país que possui uma vasta extensão territorial, o que faz com que recursos não cheguem a especificos lugares, como São Gabriel da Cachoeira. O que pode se tornar uma outra forma de apagamento da cultura indígena: a falta de um olhar político e público.


A cidade do Amazonas, que fica distante 850 quilômetros de Manaus, faz fronteira com a Colômbia e a Venezuela e o acesso à região é por via fluvial e aérea, fazendo com que, monetariamente, o translado não seja muito acessível e tornando também o custo de vida alto para os moradores de São Gabriel.


Outro aspecto, a do próprio apagão, é que a taxa de mortalidade por suicídio entre indígenas na região é quase o triplo da média nacional, segundo o Ministério da Saúde. Mesmo entre indígenas orgulhosos de sua ancestralidade, diversos fatores como falta de políticas públicas fazem com que muitos casos de suicídios sejam registrados no local.


"Em São Gabriel é bem difícil conseguir uma oportunidade de emprego, a maioria das pessoas vivem na extrema pobreza, não temos investimento em saneamento básico, banheiros e nem segurança. Além de que o alcoolismo também é um grande problema na região. Muitos trocam comida, peixe ou qualquer coisa por bebidas alcoólicas e isso afeta principalmente os jovens que não têm nenhum tipo de lazer, afetando a questão do suicidio na cidade.", relata Siléia, a indígena do povo Tukano.


Do mesmo modo, a Arielen, do povo Baré, complementa que em sua família houve a perda do seu primo e ela sente que quando acontece um caso de fatalidade através do suicidio desencadear outros casos na região.


"Eu tenho um primo, que no ano passado, se suicidou também. Mesmo se houvesse justificativa para isso, não dá para aceitar", contesta.


Por ser um ponto estratégico do Brasil, consequentemente, existe uma presença "massiva" das Forças Armadas no local.


Por lá, estão a 2ª Brigada de Infantaria de Selva, Comando de Fronteira Rio Negro, 5º Batalhão de Infantaria de Selva, 21ª Companhia de Engenharia de Construção, Destacamento do Controle do Espaço Aéreo de São Gabriel da Cachoeira, Destacamento de Aeronáutica de São Gabriel da Cachoeira, Destacamento da Comissão de Aeroportos da Região Amazônica e o Destacamento da Capitania dos Portos da Amazônia Ocidental.


O que afeta, preponderantemente, a questão do acesso à saúde pública na região. Segundo a própria Siléia, seus avós morreram sem atendimento algum por priorização de militares nos hospitais públicos.


Nesse sentido, Arielen relata que a qualidade de vida dentro da própria comunidade é muito difícil visto que os trabalhos são manuais, sob o sol e completamente exaustivos. A mesma relata que por diversas vezes refletiu se essa era realmente a vida que, realmente, teria para ela e seus familiares. Hoje, cursando Ciências Econômicas, também na Universidade Federal de São Carlos no Campus Sorocaba, se sente determinada em mudar o estilo de vida de sua família.


"Infelizmente, se os jovens não tiverem alguém incentivando a terem oportunidades, vão se isolando. Aconteceu comigo, quando eu estava na roça com os meus avós, eu chorava e pensava 'Meu Deus, será que vou viver assim para sempre? No sol, colhendo mandioca e ralando muito. Será que um dia nós indígenas vamos entrar em universidades?'. Tudo isso pensando em nossa família, é muito triste ver meus avós anos pegando sol todos os dias e trabalhando muito", complementa.


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Arielen e seu avô em São Gabriel da Cachoeira (AM) com o tradicional Aturá. (Acervo Pessoal)


O cesto preso às costas é tradicionalmente conhecido como Aturá pelos povos indígenas, suspenso por uma faixa passada à volta da cabeça, e que serve para transporte de frutos, alimentos e sementes.


Arielen relata que o Aturá chega a pesar mais de 40kg e é necessário fazer trilhas com o mesmo para chegar à comunidade de sua família.


"Meu avô sempre pergunta se está pesado, mas eu aguentei cerca de 30 a 40 minutos para chegar na nossa comunidade. De fato, estava pesado, mas eu aguentei até o fim", complementa.

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"Eu também tenho o direito de oportunidades.
Eu posso ter o direito de trabalhar e dar uma vida digna a minha família.
Tirar os meus avós do sol e do trabalho fisicamente pesado.
É triste quando dizem que um indígena não faz nada,
vá você trabalhar lá na comunidade!"
Arielen Canino Miguel

É na luta que a gente se soma


"[..] Brasil, meu nego

Deixa eu te contar

A história que a história não conta

O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra


[...] Desde 1500

Tem mais invasão do que descobrimento

Tem sangue retinto pisado

Atrás do herói emoldurado

Mulheres, tamoios, mulatos

Eu quero um país que não está no retrato"


História Para Ninar Gente Grande - Canção de Estação Primeira de Mangueira


Mariana Mello é uma mulher branca e não indígena e estudante de Biologia. Ela se dedica ao estudo da língua yēgatu através de cursos fornecidos por instituições como a Universidade de São Paulo (USP), Museu do Índio, Sesc e entre tantas outras que fomentam a cultura ancestral indígena. Seu interesse pela cultura começou quando teve o contato com a culinária ancestral, ainda quando criança.


"Eu me identifiquei tanto, como visão de vida e procurei me inserir de forma bem natural na cultura de acordo com as oportunidades que foram aparecendo [através das instituições]. Quando comecei a pesquisar sobre o tronco linguístico, fiz curso de [tupí] guaraní, mas comecei a pesquisar na internet e me dedicar a causa.", conta.


Hoje, Mariana faz parte do Clube Poliglota Sorocaba, idealizado por amigos que tinham o desejo de treinar vários idiomas, no qual estão formando grupos de pessoas interessadas em aprender o tronco linguístico indígena. O CPS também oferta cursos de outros idiomas através de encontros em shoppings e outros locais públicos.


Além de tudo, não se pode deixar de lado que, durante a produção dessa reportagem o tema da redação do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, foi "Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil". Entre os povos tradicionais estão os indígenas, que por sua vez, tiveram espaço no maior exame do Brasil, aplicado anualmente para mais de 5 milhões de estudantes.


Temática contemporânea que representa a atual situação do país, onde povos tradicionais vivem momentos de luta em defesa de suas terras e culturas.


Retratos da Resistência








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