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[NÃO] É SÓ UMA PIADA

Mulheres enfrentam verdadeiros desafios dentro do humor e, apesar de empecilhos como o machismo, fazem sucesso no ramo


Pedro Camargo


“Nada descreve melhor o riso dos homens do que aquilo que eles acham ridículo” é a frase do escritor Goethe — um dos maiores poetas de todos os tempos — que, mesmo escrita três séculos atrás, retrata a realidade de importantes programas de humor brasileiros que obtiveram grande sucesso nas últimas décadas. De ‘Escolinha do Professor Raimundo’ a ‘Sai de Baixo’ é difícil não lembrar ‘como’ e ‘quem’ os protagonizam. Já nos palcos do stand-up, artistas que geram identificação com problemas vividos, vem tomando espaço.


“A arte imita a vida” aos mínimos detalhes, é o que dizem. O machismo presente na sociedade, infelizmente, não escapa disso. Ele também está na forma de fazer humor e é um dos pontos que podemos exemplificar de forma didática: historicamente, as mulheres são ensinadas a se comportar de maneira diferente do que não é sequer cogitado a ser imposto ao sexo masculino. Por exemplo, o estrelato de Tatá Werneck que, aos 39 anos, se tornou uma das apresentadoras de talk show humorístico de maior renome da atualidade, relata o próprio descontentamento em uma entrevista para a série Viver do Riso, dentro do episódio ‘A Mulher na Comédia’, produzida pela Globo Play.


“Para eles, homens são engraçados e mulheres são malucas”, é o que diz a humorista. Foi enquanto jovem, dentro das salas de aula, que Tatá sofreu certo preconceito pela forma como se comportava. O universo lúdico e bagunceiro era algo para meninos explorarem, não para elas. Ao fazer brincadeiras das quais não eram de sua ‘caução’ enquanto menina, Tatá era malquista por todos. “A frase que ouvi a vida inteira foi ‘meninas não podem fazer isso’. Eu era criticada por ser uma menina doida”, relata.


Seja retratada por menina doida, ou quaisquer outros termos pejorativos, ao se falar sobre o comportamento no contexto de produções humorísticas, é evidente que às mulheres é atribuído um papel coadjuvante em relação aos homens. Essa sarcástica realidade está presente em diversos programas de TV e séries do gênero, mas também não é muito difícil de ser enxergada em comentários espalhados pela internet (um pouco mais disso ainda nesta reportagem). No Brasil onde vivemos, o sustento de preconceitos sociais existentes deu força para a construção do discurso humorístico dentro de todos os cenários possíveis, se assim podemos dizer. Ou seja, não é algo incomum e exclusivamente compartilhado por Tatá. Mulheres que se arriscam nos palcos do stand-up comedy, hoje partilham de relatos semelhantes: é o caso de Sílvia Torres (nome artístico), humorista há pouco mais de um ano na casa de humor sorocabana Black House.


Sílvia Torres se apresentando na casa de humor sorocabana Black House (Foto: Pedro Camargo)


“Quando eu era criança, sempre fui muito arteira. Na escola, eu era aquela “palhaça”

que me sentava no fundo e fazia amizade com os meninos. Isso porque, por serem mais da zoeira, acabava me identificando mais com eles”, relata ela. De alguma forma, ao longo da vida, Sílvia sempre se interessou por arte. Desde aquela curiosidade em saber como funcionava os bastidores de programas de TV ao farto interesse em se ingressar às aulas de teatro... Pois bem, isso a levou a descobrir que não era esse o tipo de palco que a cativava realmente. “Era aquilo, mas, ao mesmo tempo, não era aquilo...”.


Foi nas casas dos 30 anos (idade que, simpaticamente, ela não se interessa nem um pouco em divulgar ou afirmar), que a humorista sorocabana conta ter ganhado, da faculdade, um ingresso para o seu primeiro show de stand up comedy. “Eu nunca havia assistido um stand up, assim, ao vivo! Já acompanhava alguns humoristas e programas ligados à comédia pela TV e internet. Parecia que isso alimentava um pouco o meu desejo, ainda que de modo imperceptível. Mas ali, quando participei de um [show] ao vivo, foi muito legal”. A partir dessa época, Sílvia passou a frequentar mais o comedy, até passar a fazer aulas com um comediante de longa carreira no ramo. O que a incentivou a começar ao que é chamado de Open Mic — para os que possuem interesse em começar no stand-up, essa á melhor forma.


Em entrevista para a Plural, quando questionada sobre a dificuldade que encontrou no meio humorístico sendo mulher, Sílvia solta uma risada larga para responder: “muita coisa. Eu posso falar que até tive um pouco de sorte. Sempre fui respeitada, mesmo estando cercada de homens. Mas também acho que sei lidar com homens a um bocado de tempo, até mesmo se olhar para os meus tempos na escola. Então, para mim até que foi suave. Mas... a gente ouve as coisas, né?! Tem humorista mais velho que chega a pregar o estereótipo de que mulher não tem graça. Que mulher na comédia não tem graça. O cara nem conhece o trabalho de ninguém, não acompanha o trabalho de ninguém, mas é simplesmente um pensamento machista que ele carrega com ele. Muitos homens têm esse pensamento, infelizmente. Mas aqueles que dão chance, sempre acabam rindo nas minhas apresentações. É engraçado”, desabafa.


O riso por si só é uma das singularidades da humanidade e algo que intriga cientistas. Afinal, há uma questão curiosa que nos coça atrás da orelha: o que nos faz rir? É o que busca entender a pós-graduada pela USP em Gestão de Projetos Culturais e Organizações de Eventos, Cristiane Santana Mathias, em seu artigo “É SÓ UMA PIADA. Uma breve análise sobre o stand-up brasileiro e o discurso preconceituoso enrustido no humor”. Mas para aspirar melhor a ideia acerca da questão, voltaremos um pouquinho no tempo: sendo mais preciso, em 447 antes de Cristo, na Grécia antiga.


Aristófanes, um dos maiores dramaturgos daquela época, reforça o poder das mulheres em três de suas inúmeras comédias: “Lisístrata”, “As Tesmoforiantes” e “Assembleia de Mulheres”. Ainda que nelas o insulto seja exaltado e nada fosse poupado: nem deuses, nem políticos, nem filósofos e nem amantes, elas eram o centro das ações, que se desenrolam na cidade de Atenas e revelam aspectos da cultura das instituições da Grécia antiga.

Lisístrata conta sobre os planos de um grupo de mulheres de Atenas e outras cidades que planejam fazer greve de sexo para acabar com a interminável guerra entre as póleis gregas. Em As Tesmoforiantes, as mulheres se reúnem para se vingar do dramaturgo grego Eurípedes, que em suas tragédias desvaloriza o sexo feminino. Já Assembleia de Mulheres conta como elas tomam o poder de Atenas para provarem saber administrar a cidade melhor do que os homens.


Não diferente à heroicidade e ao protagonismo feminino aderido na Grécia Antiga, a tão aguardada série “Mulher-Hulk: Defensora de Heróis”, lançada em agosto de 2022, conta a história de Jennifer Walters, uma advogada que levava uma vida comum e agora precisa lidar com seus novos poderes ao se transformar em uma poderosa e grande mulher verde. A produção, que brinca com a fórmula da Marvel, dispara no gênero comédia e utiliza-se muito de um humor crítico para retratar o machismo vivido cotidianamente por mulheres.



She-Hulk, a mais nova heroína da Marvel a ganhar uma série própria. ‘it’s not easy being green...’ (Crédito: Marvel Comics)


Haters na internet


Nas redes sociais, membros de uma subcultura virtual, unidos por uma ideia em comum — o preconceito —, se apresentam de prontidão para criticar obras em que o protagonismo feminino é marcado por fortes opiniões contra o machismo da sociedade em que vivem; ainda mais quando falamos de uma super-heroína cuja história e poder se demonstram melhor desenvolvidas que as séries de super-heróis do sexo oposto. Mulher-Hulk é uma série de comédia que chamou atenção dos haters — esses que vão além de apenas xingamentos gratuitos. O machismo está presente nos comentários que eles fazem, críticas que ultrapassam o questionamento sobre a qualidade da série, bem como o conteúdo do humor.


Ainda nos tempos de Aristófanes, na Grécia, já se falava sobre outras distinções quanto ao que se era entendido sobre o riso, como cita o artigo da pesquisadora cultural, Cristiane, “a Grécia já fazia distinção dos tipos de riso subdividindo-os em “gêlan” o riso simples e “katagelân” o “rir de” caracterizado pela agressividade e zombaria”. A segunda é bastante presente hoje na comédia produzida pelo stand-up, inclusive, aonde o discurso humorístico empenha-se sobre preconceitos e estereótipos contemporâneos na intenção de propagar ou reforçar uma ideologia; aqui nada é despretensioso.


“Eu gosto de fazer os meus textos de modo que o meu público se identifique com o que eu falo. Quando vem uma mulher para me dizer que ‘nossa o seu texto é muito real, é o que eu vivo’ isso me gera muita satisfação no que eu faço”, relata a humorista Sílvia Torres sobre o próprio processo criativo na composição de seus discursos.


Segundo o artigo, o humor sempre foi utilizado para “destruir, modificar e desmitificar tipos e estereótipos”, porém, o atrevimento/ teor provocativo presente no stand-up comedy faz com que seja uma arte mal interpretada. “Embora nem todos, a maioria dos preconceitos são produtos da consciência dominante, que impera nas sociedades. Mas, preciso fazer o adendo de que nem todos os grupos sociais que utilizam do preconceito fazem necessariamente parte dessa consciência dominante”, alerta a pesquisadora. “É o lado ganhador quem sempre conta a história. A história dos pretos escravizados no Brasil é contada pelos brancos, por exemplo”, finaliza.

Um comportamento enraizado na cultura ocidental


“Com a costela que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e a levou até ele. Disse então o homem: esta, sim, é os ossos dos meus ossos e a carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada”.

No mito da criação, sob a ótica da cultura Judaico-Cristã, Deus fez o mundo em sete dias, o homem do barro e a mulher feita a partir da formação óssea desse mesmo homem, ou seja: da costela de Adão, Eva foi criada.


Mais tarde, ainda na história da criação divina, uma serpente engana Eva (SPOILER: a serpente era Lúcifer), a incentivando comer do fruto proibido, então também desobedecendo a única restrição que o Senhor Deus tinha os imposto no paraíso. Mas Eva não só havia comido o fruto proibido como induzira seu companheiro, Adão, a cometer o mesmo pecado. “Então foram abertos os olhos de ambos, e souberam que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais”. Entre as árvores do jardim, a presença do Senhor Deus os afugentou, “ouvi a tua voz no jardim e temi”, disse Adão. “A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e eu comi”, ressaltou ele.


E disse o Senhor Deus à mulher: “multiplicarei grandemente a tua dor e a tua concepção; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará”.



Arte do quadrinho ‘The Book of Genesis’, obra de Robert Crumb, artista gráfico e ilustrador, reconhecido como um dos fundadores do movimento underground dos quadrinhos americanos.


Dos mitos da criação, a mulher, saindo da formação do homem e a figura mais próxima da instituição de poder masculina, é ela a mais evidenciada na cultura de “rir de” – do termo grego katagêlan, caracterizada essencialmente pela zombaria — nas sociedades ocidentais. “A ideia de que a mulher ainda vai ser muito estereotipada no humor é evidente e, posso até dizer, inevitável. A não ser que exista uma cultura de desconstrução da imagem feminina para um empoderamento da figura dela”, evidencia a pesquisadora. “A situação ainda é exceção, e não a regra”.


Sílvia nos conta que “o stand-up não é só subir no palco, fazer as pessoas rirem e ir embora, como muita gente pensa. Há muito estudo envolvido, debate e técnica que aprendemos antes de subir lá”. Ela, que desde o ano passado, vem aprendendo bastante com o universo pelo qual se apaixonou e, naquele palco iluminado por grandes holofotes, também se encontrou, sabe muito bem do papel que é ser uma humorista mulher, mas acredita não haver distinções no humor quando o quesito é gênero. “Existe humorista homem ruim e humorista mulher ruim, claro, mas antes de falar sobre isso, você precisa conhecer o trabalho da pessoa”, afirma.


Em um outro tempo, entre os grandes nomes do humor, uma mulher para lá de desbocada conquistou um grande público e marcou a história da TV brasileira: Dercy Gonçalves, atriz, cantora e humorista. Pela trajetória, Dercy foi a exceção. Mas, hoje, as coisas mudaram um pouco, ainda que não equiparada a regra. Desbocadas, talentosas e hilariantes, Bruna Louise, Tatá Werneck, Sté Marques, Dani Calabresa e Mônica Lozzi são apenas alguns dos grandes nomes que vem chamando atenção no humor.


Mathias considera que o humor é forjado por associações complexas, sendo uma ferramenta social a qual damos graça a um determinado fato que está permeado em diferentes sociedades, sendo oriunda especificamente de cada cultura. Já para a humorista Sílvia Torres, “fazer humor é fazer as pessoas rirem e se divertirem. Acho que é levar um pouco de leveza na vida delas, sabe? A gente já tem muita ‘coisa ruim’ que acontece pra levar pra vida”.





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