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É possível embelezar sem embranquecer?

Em uma sociedade movida pelas redes sociais, apenas aqueles que se encaixam nos filtros padronizadores de traços, podem se destacar.


Joice Barros


“Eu não conseguia mais tirar fotos sem filtros, e sem eles ficava um pouco desesperada, porque não queria aparecer, não queria que as pessoas me vissem. Até quando estava gravando um story, e de repente o filtro sumia e aparecia o meu rosto real, já ficava pensando que as pessoas iam perceber que eu não era daquele jeito, que eu era horrível”. Este é o relato da jornalista expert em beleza e analista de treinamento e comunicação no Grupo Boticário, Tamires Dagnes, de 24 anos.


Diariamente alimentamos as redes sociais com publicações, e na grande maioria das vezes, com fotos pessoais. No feed, os filtros fazem parte da composição final do perfil daquele usuário, mas nos stories, eles se tornam parte de uma narrativa. Essa ferramenta foi lançada em 2016, e revolucionou a forma como as pessoas consumiam imagens e vídeos, saindo do horizontal para o vertical.


Desde 2014 na internet, Tamires acreditava não haver espaço para ela, e justamente pela escassez de representatividade negra nas redes sociais e sites da época, ela decidiu iniciar a mudança que gostaria de ver no mundo, ou ao menos em Salto de Pirapora, sua cidade natal.


Dentro dos stories os usuários narram suas ações durante o dia, e de acordo com o relatório da We Are Social e da Hootsuite, o Instagram passou a ser a terceira rede social mais usada no Brasil em 2022, com 122 milhões de usuários. Com tantas pessoas diferentes dentro da plataforma, muitas histórias são contadas diariamente, mas um padrão vem se repetindo nessas narrativas, os filtros.


Ao pular para o próximo story, dificilmente encontra-se uma imagem sem nenhuma alteração, e por mais comum que o uso dessas ferramentas de edição tenha se tornado, principalmente dentro das redes sociais, esse novo hábito pode esconder uma grave questão: o reforço de um padrão de beleza racista, que vem sendo velado pela utilização dos filtros.


As redes sociais, inicialmente tinham a opção de efeitos que apenas alteravam as cores nas imagens, hoje evoluíram ao ponto de ser possível ter características do rosto modificadas, gravar vídeos e tirar fotos com cabelos com cores diferentes, maquiagens super elaboradas ou tão sutis que o filtro quase passa despercebido. Mas essas vantagens até pouco tempo atrás não se estendiam a um grupo que representa 56,10% das pessoas declaradas negras no Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, que considera a soma entre pretos e pardos.


“Eu afinava muito meu nariz, para ficar menor, parecido com o tamanho de quando estava utilizando filtro. E às vezes falava para as pessoas: quando tiver dinheiro para uma cirurgia, quero ficar exatamente como neste filtro, porque meu rosto fica lindo”, conta a jornalista.

A criação dos efeitos sem levar em consideração os traços fenotípicos, acaba levando a alterações radicais nessas características em pessoas negras. Por exemplo, modificações como o afinamento do nariz, a diminuição dos lábios, o acinzentamento da cor da pele e até mesmo a mudança na cor dos olhos são indícios do semblante de uma pessoa branca. Essas mudanças descaracterizam as pessoas negras que tentam utilizar aquele filtro, e portanto marca a reprodução do racismo nas redes sociais.


E isso ocorre porque a tecnologia não é neutra e ainda possui limitações. Os filtros que são utilizados hoje nas redes sociais como o Instagram são construídos dentro de um contexto social específico e por sujeitos também já determinados por essa influência cultural, que vem sendo construída desde os primórdios do Brasil.


A cientista social, doutora em ciências da comunicação e professora em cursos de pós graduação da Universidade de Sorocaba, Tharcyanie Cajueiro, explica que por sermos seres culturais, nós compartilhamos visões de mundo e valores que são propagados por meio da linguagem, desde o momento em que começamos a nos relacionar com quem está ao nosso redor. Nossos pensamentos, valores e ações são influenciados pelo contexto sociocultural no qual estamos inseridos, ou seja, de forma simples, se crescemos em um país, passamos a falar seu idioma e a adquirir hábitos e costumes deste local.


E ao tratar do Brasil é necessário entender que o racismo é estrutural. “Sinteticamente, somos povos colonizados pelo branco europeu, que impôs sua cultura e modo de vida. Sua hegemonia ocorre não apenas em termos econômicos, mas também sociais e culturais. Nesse sentido, ao internalizarmos seus valores, buscamos ser parecidos com eles (o homem branco europeu)”, relata Tharcyanie.


Para que mudanças, realmente, transformadoras possam acontecer é necessário muito trabalho ainda, isso inclui um intenso e contínuo processo de conscientização e transformação social, o que requer tempo e dedicação a essas pautas.


As redes sociais passaram a se tornar um espelho, que pode refletir as visões de mundo dos seus desenvolvedores, incluindo certos preconceitos, neste caso, a maneira como os filtros operam diante de pessoas negras. “A lógica das redes sociais propicia bolhas, além disso elas são reflexos das nossas relações sociais permeadas por marcadores sociais de diferença, e também de desigualdade. Dessa forma, não é possível dissociar o mundo online do offline”, comenta a cientista social e doutora em ciências da comunicação.


Portanto a imposição de padrões de beleza que possuem a branquitude como pilar estético nos filtros das redes sociais também estão vinculados ao racismo que acontece na sociedade brasileira.


A inclusão gera mudanças


Em maio de 2022 a Meta lançou o desafio RAP: Realidade Aumentada na Pele, para proporcionar uma maior diversidade, inclusão e equidade no metaverso. O projeto foi exclusivo no Brasil e tinha como propósito o treinamento e a premiação voltada para a educação e desenvolvimento da comunidade negra dentro da realidade aumentada (RA) do país. Esse desafio procurava diminuir as lacunas de inclusão e diversidade dentro do ambiente digital.


Kevony Martins de 23 anos, designer, fundador da Apuan Design, e um dos dez ganhadores do desafio, contou para a revista Plural que foi possível perceber toda a preocupação das equipes que desenvolveram esse projeto, pois também existiam pessoas pretas coordenando e pensando em cada detalhe.


Tanto na produção dos filtros, em existir diferentes tons de peles e mudanças que fossem realçar, mas não embranquecer, quanto a preocupação de que eles se sentissem acolhidos, pudessem entender como foi feito e pensado cada processo desse desafio.


“Eles também foram atrás de mentores negros, e única profissional ministrando as aulas, branca, era uma especialista em filtros de maquiagem. E isso ocorreu por não haver uma mulher negra para poder dar essa mentoria. Ela ficou até receosa de aceitar o convite, mas explicaram que essa era a oportunidade de poder conseguir alcançar novos criadores, e quem sabe na próxima edição ter uma especialista em maquiagem negra para poder dar essa mentoria”.


Confira um pouco dessa experiência do Kevony Martins durante o desafio: l1nq.com/InstagramOkevonymartins.


Diversos personagens importantes para a história brasileira já foram embranquecidos. Machado de Assis, escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras, por muitos anos foi representado como um homem branco, e até na certidão de óbito sua pele foi classificada como de "cor branca". Mármore branco era utilizado para representar seus bustos e estátuas, nunca o basalto preto, mas fotos da época mostram o cabelo crespo, a pele mais escura e o nariz mais largo.


Chiquinha Gonzaga, primeira mulher negra a reger uma orquestra no Brasil, teve suas conquistas embranquecidas pela falta da representatividade, sendo representada por uma atriz branca na minissérie de 1999 da TV Globo, que levava o seu nome. Apenas em 2009, documentos que mostravam a origem negra da pianista foram encontrados.


E quando olhamos para o mundo, é possível encontrar muitos outros nomes que representam esse embranquecimento em figuras importantes, às vezes proporcionado pelo olhar que buscou representá-los, como nos casos acima, ou por vezes partindo dessas pessoas, que diante de um contexto sociocultural, mudaram a cor de suas peles.


Michael Jackson é o caso mais conhecido, e mesmo que o cantor apresentasse vitiligo e lúpus, duas doenças que podem afetar a pigmentação da pele, as mudanças estéticas como o afinamento do nariz, dos lábios e das bochechas, foram escolhas dele. E esse é um padrão de comportamento que vem crescendo, e ganhando força com as redes sociais. Um estudo realizado na Academia Americana de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva Facial (AAFPRS, de acordo com a sigla em inglês), feito pelos próprios cirurgiões, mostrou que 72% deles foram procurados por pacientes que gostariam de mudar sua aparência física para ficarem melhores nas selfies, em 2019.


E diante de um momento em que a internet e a vida real estão conectadas e suas realidades até se confundem, a importância de existir cada vez mais profissionais que entendem e se preocupam com essas pautas, fica evidente. “Você vê como o racismo está muito impregnado, como ele age e é utilizado nessas novas tecnologias. Eu vejo isso como um problema, vi que outros criadores também enxergam essa problemática, e encontrei nisso uma ótima oportunidade de a gente poder desmistificar, que não é qualquer pessoa que pode criar um filtro”. Comenta Kevony.


Além da importância do acesso a essas informações, a diversidade dos criadores que fazem parte dos processos, desde a criação até na utilização dos filtros, também é essencial. “É uma oportunidade de a gente poder repensar isso, de poder criar filtros que não embranquecem, não apaguem, não acabam excluindo parte da população ou dizendo o que é belo ou não é."



Certificado de realização do desafio RAP (Realidade Aumentada na Pele)

Kevony Martins, um dos dez ganhadores, durante visita na sede da Meta em São Paulo

Detalhes da roupa e do kit recebido durante a visita na sede da Meta em São Paulo

Tamires Dagnes encarando sua versão transformada pelos filtros

Tamires Dagnes em sessão de fotos para a Plural


Tamires Dagnes em sessão de fotos para a Plural. Foto com edição.


Ouça algumas dicas que os nossos entrevistados, Tamires Dagnes e Kevony Martins deixaram especialmente para você, leitor da revista Plural.


Busque começar com tutoriais, mas não fiquei apenas neles - Kevony Martins



Não tenha medo de ser pioneiro – Tamires Dagnes



A representatividade é enriquecedora - Kevony Martins








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